sábado, maio 20, 2006

CONFLITO

"Acredito em um deus a menos que você. Quando entender porque deixou de acreditar em todos os outros deuses, você vai entender porque deixei de acreditar no seu".
(Stephen F. Roberts)

Tem-se comentado muito sobre o conflito entre muçulmanos e ocidentais, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. A interpretação mais corrente é de um choque de civilizações, entretanto gostaria de propor que se pensasse sobre o assunto sem colocar Deus no meio. Primeiro porque o conflito já é uma complicação imensa sem a religião, depois porque não me parece que o Deus cristão ou Alá mereçam responsabilidade sobre os atos de seus fieis.

Já que este artigo saiu maior que os outros, achei por bem fazer um esqueminha para ele ficar mais fácil de entender. Meu argumento é, principalmente, que os dois lados:
a) estão sem conseguir entender um ao outro porque são movidos por sentimentos profundos e recentes de rancor mútuo;
b) questões econômicas apontam para a permanência do conflito;
c) por vários motivos, elegem os lideres inadequados para lidar com a crise atual.
A primeira conclusão, um pouco pessimista, é de que os conflitos vão durar tanto quanto as reservas árabes de petróleo. A segunda é que nós brasileiros não temos nadas a ver com o assunto, a não ser indiretamente – a imagem de que o conflito se dá entre as culturas ocidental e oriental é falsa. Vamos por partes.

1. Estas coisas são sempre mais complicadas e se tornam piores pela fumaça de “choque de civilizações”. Do jeito que está sendo colocada a coisa, tanto muçulmanos quanto europeus e americanos pensam que têm razão sozinhos. Estão sendo levados ao conflito por razões que não têm nada a ver com as suas diferenças culturais, mas se aferram exatamente a estas diferenças para entender onde se meteram.

A - A frase lapidar através da qual os americanos avaliam e explicam o comportamento diferente é "they don't know any better". A tradução literal é “não conhecem nada melhor que isto”, mas o que querem dizer é que "quem é diferente está obviamente enganado, se eles conhecerem nosso jeito de ver o mundo é claro que pensarão exatamente como pensamos. Eles não têm culpa, apenas ainda não conhecem a maravilha que é pensar do nosso jeito".
Da mesma forma como uma parte dos muçulmanos tem certeza do próprio monopólio da verdade, um pedaço do ocidente também tem esta certeza absoluta. Eles acham que o seu jeito de viver está sendo atacado. Nem todos de lá podem ser culpados, como nem todos de cá, mas as multidões dos dois lados são incapazes de fazer distinções sutis (dai terem votado no Hamas e no Bush, por exemplo).

B – As culturas têm dois conteúdos diferentes: conhecimentos e informações de um lado; emoções e sentimentos do outro. Fatos, que são racionalmente inteligíveis, e valores, que são afetivamente apreensíveis. Sobre os dois pode haver argumentação e defesa, mas o tipo de argumento desenvolvido é diferente. Não dá para se provar cientificamente como se deve optar em matéria de valores (pela amizade ou pelo amor, por exemplo); mas dá para provar, com evidências científicas, que a Terra é uma bola e não um plano.
Pensar que "eles não conhecem nada melhor que a sua forma de se comportar" é perigoso porque fala expressamente só a um pedaço da cultura, os fatos, mas acaba subentendendo que os valores ocidentais são evidentemente superiores. É enganoso porque esconde um pedaço da realidade e com isto pode convencer sem explicar nada.

Este tipo de sentimento recíproco, de superioridade indiscutível, é o maior ingrediente do conflito. Faz um lado ver no outro só uma caricatura do que ele tem de diferente, esconde as semelhanças e os reais motivos da discórdia.

2. Não dá para entender esta situação sem um pouco de história.
O mundo árabe de maneira geral e especialmente o muçulmano foi importantíssimo para o avanço da ciência e da filosofia durante toda a idade média européia. Faziam MUITO comércio, num ambiente cultural essencialmente aberto e progressista. Eu tenho um amigo cujo pai era caixeiro viajante na década de 1940. Ele chegava nas vilas mais afastadas do Norte brasileiro e perguntava se era o primeiro “turco” vendendo coisas por ali. Queria ser o primeiro em algum lugar, mas nunca encontrou um povoado onde um conterrâneo não tivesse chegado antes!
O que eu quero dizer é que uma cultura como esta não tem nada a ver com explodir pessoas só porque seguem um Deus diferente (até porque todo mundo é bem-vindo “no lojinha”). Se a colônia árabe no Brasil nunca se caracterizou pelo ódio racial, será que deixaram parentes tão diferentes na Ásia? Que raio aconteceu por lá, para os "radicais" terem esta visibilidade e influência toda que têm hoje?
Minha idéia é que a xenofobia deles tem dupla origem: uma antiga e outra mais recente.
A origem antiga é parecida com a que tem levado os europeus e americanos a tentar restringir seu fluxo de imigrantes.
Os países árabes foram perdendo importância e dinheiro ao longo dos séculos 16 a 18 e culpavam os europeus, pois eles faziam o mesmo comércio, só que mais barato. Os custos dos árabes eram muito mais altos, pelas rotas terrestres que usavam, enquanto os loucos europeus se atiravam em viagens marítimas em que até 80% da tripulação morria e freqüentemente o navio inteiro se perdia.
Nestas condições é típico ter raiva do concorrente, que está agindo de forma desleal. É o mesmo sentimento que está atrás dos protestos contra o dumpping social chinês ou os salários e condições de trabalho aos quais se submetem os mexicanos (e brasileiros) nos Estados Unidos.
Depois a Europa acabou dominando o comércio internacional, mas aí já vem o motivo mais recente e um tanto mais complexo pelo qual eu entendo os sentimentos dos radicais islâmicos.
O caso é que durante o último século eles foram invadidos, espoliados, torturados e de maneira geral violentados pelos países ricos da Europa e mais recentemente pelos EUA. No reino dos sonhos até se poderia esperar que a geração atual fosse magnânima e esquecesse o passado, mas os seres humanos raramente são magnânimos e as invasões o Afeganistão e do Iraque não são parte do passado.
Este tipo de sentimento é bastante natural, na verdade. Veja-se que os EUA financiaram as ditaduras do fim do século passado na América Latina inteira, enviaram tropas para ensinar nossos militares a torturar e submeter nosso povo a toda sorte de violências. No Brasil a coisa foi até leve, comparando-se com as carnificinas promovidas na Argentina e no Chile, por exemplo, ou na Nicarágua. A mim não me parece surpreendente que os latino-americanos tenham algum sentimento anti-americano e que nossas democracias votem agora em discursos contrários aos EUA. Como diz o Lou Reed, “este é o preço que paga quem invade”.

Portanto o sentimento anti-ocidental realmente existe no mundo muçulmano genericamente e no Oriente Médio mais especificamente, por motivos internos deles, mais antigos, e também pelos conflitos recentes da relação.

3. Tem uma coisa interessante, entretanto: do mesmo jeito como as multidões não são generosas, elas também não têm muita memória, então se os dois lados parassem de se ferir talvez uns cinqüenta anos fossem suficientes para colocar as diferenças de lado. Foi o que aconteceu entre a França e a Alemanha, por exemplo, ou entre os EUA e a Inglaterra.
Mas o petróleo está lá, então as companhias de petróleo ocidentais também estão, comprando e corrompendo governos sempre em detrimento do povo dos países árabes. Quando as ditaduras locais não resolvem, invadem-se os países para governo direto ou partilhado. Isto só vai aprofundando os sentimentos negativos, claro, e quanto mais negativos estes sentimentos, maior a facilidade de tanger o povo para manifestações iradas. Foi assim na Alemanha nazista, nos EUA macarthistas ou na ocupação japonesa da Coréia. Parte do povo está sendo levada pelo discurso radical, que se alimenta destes sentimentos e fatos que eu disse acima.

A convivência continua e a brasa vai se tornando fogo, pelas mãos de políticos ambiciosos que usam a retórica radical para angariar apoio e conduzir as multidões traumatizadas - como fazem Bush, o presidente recém eleito do Irã (Mahmoud Ahmadinejad) ou fazia Ariel Sharon.
É uma pena, mas enquanto o petróleo e a guerra forem os motores principais da economia americana é difícil que isto mude.

4. Agora vou falar uma coisa com a qual talvez alguns dos eventuais leitores discordem: não acho que os valores das duas culturas sejam tão diferentes. Afinal de contas, são influenciados os dois pelo mesmo Livro. O que acho que está acontecendo é um o uso das diferenças por torpes lideranças políticas dos dois lados.
Tem uma dinâmica horrível em andamento. O discurso simplista, radical, tem tomado campo no ocidente rico e nas regiões árabes. Os políticos que fazem este discurso do ódio e da diferença simplificam tremendamente as coisas, mas as multidões são tangidas por símbolos, não por argumentos. A visibilidade (e o apoio) que os políticos do ódio ganham (dos dois lados) aumenta a visibilidade da diferença e do ódio que um lado nutre contra o outro.
É uma espiral bem pouco saudável, mas não parece que vai acalmar sozinha nem tão cedo.

Luiz Marcello de Almeida Pereira